UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA - AFRICAN STUDIES CENTER
Noticias de Mocambique 76, (04/07/'96)

Noticias de Mocambique 76, (04/07/'96)

NotMoc - Noticias de Mocambique
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No 76 7 de Abril de 1996 Maputo
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Esta edicao do NotMoc estah inteiramente dedicado ao tema da mulher mocambicana. Recolhemos como habitualmente alguns extractos da imprensa nacional sobre o assunto, e contamos tambem com algumas contribuicoes especiais postas a disposicao do NotMoc com ocasiao da comemoracao do 7 de Abril, Dia da Mulher Mocambicana.

1. O 7 DE ABRIL NA IMPRENSA
2. O DIA 7 DE ABRIL E AS FLORES DA HIPOCRISIA
3. SENHORES DO SEU NARIZ: AMOR, PODER E VIOLENCIA
4. O ABORTO E O DIREITO DE CONTROLAR O PROPRIO CORPO
5. GENERO E RIQUEZA NO MOCAMBIQUE RURAL

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1. O 7 DE ABRIL NA IMPRENSA
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Poucos dados concretos foram dados pela imprensa este ano sobre a evolucao da situacao da mulher mocambicana. (Savana 05/04, Noticias 06 e 08/04, Domingo 07/04). Falou-se no geral, a partir do balanco do Chefe de Estado, e da Secretaria Geral da OMM, Teresa Tembo, sobre os avancos conquistados desde a Independencia: Ha mulheres profissionais em todas as areas da economia e do aparelho de estado, mulheres ministros (1), vice- ministros (5), varias directoras de empresas, muitas empresarias por conta propria.

O sector informal da economia, que por razoes obvias eh dificil de estudar mas cujo poder economico se calcula proximo do volume do sector formal, tem uma forte representacao de mulheres comerciantes: as 'mamanas' do bazar, do dumba-nengue, do trafico fronteirico. Elas proprias, queixam-se da accao criminosa dos 'ninjas' e das veleidades da policia e das alfandegas, que volta e meia as deixam sem os produtos para venderem.

Nao se falou uma palavra sobre as centenas de prostitutas que embelezam as esquinas mais concorridas das cidades. Lourdes Mutola, pelo contrario, esteve presente em todos os inventarios sobre as conquistas da mulher.

Houve sim uma mudanca interessante nas tradicionais cerimonias comemorativas do dia: Na deposicao de flores no Monumento aos Herois Mocambicanos, quem colocou a primeira coroa foi Teresa Tembo, Secretaria Geral da OMM, em vez de ser o Presidente da Republica, como habitualmente acontecia.

Entre as mulheres entrevistadas pelos Domingo, estava Candida Bila, actriz de teatro, encenadora e estudante de Agronomia; Bela Rocha, pintora; Elvira Viegas, cantora; Lina Magaia, escritora e deputada; Helena Jossai, editora e estudante de Direito; Perola Jaime, bailarina da Companhia Nacional de Canto e Danca; Gloria Muianga, apresentadora e realizadora de programas da TVM; Celestina da Conceicao, "Miss Mocambique" e estudante de Medicina. Todas elas foram unanimes em sentir que entre os homens mocambicanos ha ainda muita resistencia e desconfianca em relacao aa capacidade da mulher. "Nao sei, sinceramente o que impede o Presidente da Republica de nomear mulheres-governadores provinciais" comenta Lina Magaia. "Por mais que se tenha o mesmo nivel de escolaridade que o homem (e ateh mais competencia) se se for a nomear alguem para um cargo de chefia, escolhem logo o homem" alega Gloria Muianga. As mulheres precisam de ajudar a educar o homem, eh a conclusao geral. "Houve tempos em que ele nem sequer queria ouvi-la, e considero que o que contribuiu para mudar um bocado a sua mentalidade foi o proprio ritmo da vida em si" eh a reflexao de Celestina da Conceicao.

Talvez um dos 'toques' mais interessantes das comemoracoes do 7 de Abril o encontramos na publicidade da MABOR-ORGULHO NACIONAL, que tao explicitamente apresenta o 'ideal' da mulher urbana:

"A MABOR sauda a Mulher Mocambicana neste seu belo Dia com as maiores felicidades: Ela levanta-se cedo, acende o lume, acorda os filhos, cuida da casa, pega no carro [com pneus Mabor, I presume?], leva-os aa escola, volta a casa, vai para o emprego com o marido, chega a casa, serve o almoco, volta ao servico, regressa a casa, olha os cadernos dos filhos, lava a roupa, passa a ferro, serve o jantar, arruma a loica, conversa com o marido, deita-se tarde e, no dia seguinte, volta a levantar-se cedo, ao ritmo de sempre do seu dia-a-dia, dando o melhor de si pela felicidade da familia. Para Ela, a nossa Homenagem."

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2. O DIA 7 DE ABRIL E AS FLORES DA HIPOCRISIA
por Maria Jose Ribeiro Arthur
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Todos os anos, a 7 de Abril, tomamos conhecimento que em tal ou tal lugar de trabalho o chefe juntou as trabalhadoras do sexo feminino e que, apos um discurso sobre a importancia da mulher para o desenvolvimento nacional, ofereceu a cada uma uma flor ou um ramo de flores. O que ninguem conta, pelo menos em voz alta, eh que durante o resto do ano muitos chefes discriminam profissionalmente as mulheres, atribuem-lhes tarefas de menos responsabilidade e pouco prestigiantes ou ainda as assediam sexualmente.

Este exemplo pode ser reproduzido tanto ao nivel do Estado como no ambito domestico, quando a 7 de Abril o marido oferece flores aa mulher que explora e bate no seu quotidiano.

A constatacao deste facto pode levar-nos a formular inumeras questoes, entre a quais: porque se festeja o dia 7 de Abril? Quem tira dividendos deste aparato festivo proclamadamente em prol da mulher? Para alem dos presentes e das flores, quais as aquisicoes concretas para a mulher? E, finalmente, porque eh que se oferecem flores aa mulher? (estamos evidentemente a falar de uma cultura urbana ou sob a esfera de influencia do Estado, promotor de uma cultura nacional e "moderna").

Na impossibilidade de tratar de tudo, gostariamos de nos concentrar na ultima questao, i.e., tentar entender em que linguagem nos falam as flores.

O que se diz das flores e o que nos dizem elas? Quando se interrogam alguns individuos acerca dos motivos porque eh que eh mais apropriado oferecer flores a uma mulher do que a um homem e, mais particularmente, porque eh que as flores sao "o" presente feminino por excelencia, percebe-se de que nesse acto existe uma forte carga simbolica. Quer dizer, as flores falam por si proprias.

Peguemos somente em tres dos argumentos mais correntes:
- "As mulheres sao belas como as flores"
- "As flores servem para embelezar o lar e falam de
harmonia"
- "As mulheres sao frageis como as flores"

De cada uma destas afirmacoes podemos entender o seguinte:

1. A beleza da mulher assim evocada nao eh simplesmente a beleza fisica (em certos sentidos socialmente perigosa), mas eh sobretudo uma exaltacao da mulher como mae, esposa e irma e a sua dedicacao ao bem-estar dos parentes. I.e., esta mensagem nao eh enderecada aa propria mulher, mas aa "mulher de alguem". Nao representa um incentivo para que ela se dignifique como ser humano, mas que continue a dedicar-se aos outros.

2. A segunda afirmacao articula directamente a mulher aa esfera domestica, o lar, um dos principais espacos onde se produz e reproduz a desigualdade nas relacoes homem/mulher.

3. Finalmente, a declaracao da fragilidade da mulher eh relacional, ou seja, a mulher eh fragil relativamente ao homem. Na realidade, estamos perante um dos argumentos-chave que sustenta a subordinacao da mulher: esta precisa de ser protegida e a proteccao significa quase sempre controlo.

Concluindo, diremos que as flores que se oferecem aa mulher transportam consigo uma mensagem de passividade e de aceitacao da situacao actual de desigualdade.

Gostariamos que o 7 de Abril servisse como momento de reflexao sobre o muito que falta fazer para construir uma sociedade mais igualitaria entre homens e mulheres e sobre as vias mais adequadas para provocar a mudanca. As flores deveremos oferecer-nos a nos proprios se e quando comemorarmos a libertacao.

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3. SENHORES DO SEU NARIZ: AMOR, PODER E VIOLENCIA
por Paula Meneses e Wenke Adam
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A partir da segunda quinzena de Janeiro deste ano, estalou na imprensa nacional uma contenda verbal sobre a violencia domestica, despoletada por uma entrevista aa Dra.Maria Leonor Joaquim, presidente da Associacao Mocambicana das Mulheres de Carreira Juridica (AMMCJ), numa emissao do telejornal da TVM.

Varios dos debatantes, pessoas e organizacoes que a seguir se pronunciaram sobre o assunto tinham interpretado a Dra.Joaquim como afirmando que as 'sovas' que as mulheres recebiam dos maridos eram um acto de amor. A impressao que ficou na opiniao publica era que a AMMCJ tinha feito uma investigacao sobre o assunto para chegar a essa conclusao, e que portanto condescendia com a violencia domestica. Isto provocou escandalo maior, e a AMMCJ e a Dra.Joaquim foram objecto duma serie de protestos e ateh de piadas ridiculizando o assunto. O Domingo chegou a publicar um artigo com o titulo "Caricia leva aa prisao" onde afirma que um estudo de juristas mocambicanas chegou aa conclusao que a agressao dos homens a mulheres em Mocambique pode ser vista como manifestacao de carinho.

Em 26 e 27 de Janeiro o Noticias publicou na integra (em duas partes, na rubrica "cartas dos leitores") um esclarecimento da presidente da AMMCJ, onde informa entre outras coisas sobre o seguinte:

- Em Dezembro de 1995 a AMMCJ depois de tomar conhecimento duma serie de casos grotescos de assassinatos de mulheres pelos seus respectivos maridos, onde os agressores nao tinham sido penalizados ou estavam apenas indiciados por "agressao fisica", emitiu um comunicado condenando publicamente esses factos, que foi enviado ao Noticias, Savana, Domingo, TVM e RM. Apenas a Radio Mocambique publicou o comunicado.

- A seguir, e depois de ter sido contactada por familiares de uma das malogradas vitimas, a AMMCJ enviou uma carta ao Presidente da Republica, com conhecimento do Primeiro Ministro, Presidente do Tribunal Supremo, Procurador Geral da Republica e dos orgaos de informacao, solicitando que o infractor fosse prendido e reponsabilizado pelo crime. Mais uma vez, apenas a Radio Mocambique difundiu a carta.

- A TVM solicitou filmar uma entrevista com a presidente da AMMCJ, onde ela falou extensamente sobre a violencia domestica, explicando as insuficiencias do Codigo Penal em vigor [desde 1886, cento e dez anos] e sugerindo medidas para que as mulheres possam ter accesso aa proteccao contra os maus tratos que a Constituicao declara para todos os cidadaos. No caso da mulher rural, a Dra.Joaquim constata que nas normas tradicionais a mulher recebe bofetadas sem ter conciencia de que isso constitui violencia domestica, porque foi ensinada de que se o homem nao a bate de vez em quando nao a ama. Esta situacao poderia ser ultrapassada atraves da educacao legal da mulher, que passaria a conhecer os direitos constitucionais que lhe assistem. Informou tambem que a AMMCJ pretendia em 1996 realizar um estudo sobre a violencia domestica.

- Apesar de ter feito em total tres sessoes de entrevistas com a Dra.Joaquim, a TVM difundiu apenas breves extractos da conversacao no Telejornal do 10 de Janeiro. Sacadas fora do contexto original, os teleespectadores tiraram as conclusoes que entenderam das palavras da presidente da AMMCJ.

Neste debate, destacam-se como questoes centrais:
- Com que fim eh perpetrada a violencia domestica sobre a
mulher?
- A violencia fisica que eh praticada com "boas intencoes"
constitui uma violacao dos direitos humanos?
- O conceito de violencia eh uma construcao cultural, i.e.,
aquilo que para a sociedade "moderna" constitui violencia,
pode nao ser considerado como tal nas sociedades
"tradicionais" ("nossa sociedade")?

Esta ultima questao poderia ser discutida na extensao de outro tema actual, a da dupla dupla administracao: para alem da esfera juridico-legal, como eh sancionada a violencia fisica em outros espacos de normatividade social (familia, comunidades religiosas, bairro, comunidade rural...)?

A violencia constitui um componente importante do processo de adestramento das mulheres para a sua subordinacao ao homem (quando a autoridade e as decisoes sao compreendidas como sendo restritas aa esfera masculina); outros dos factores apontados que levam aa violencia sao a crescente desigualdade economica entre os homens e as mulheres, o proprio ideal masculino de dominacao, firmeza e honra, e finalmente a utilizacao da violencia na resolucao de conflitos pessoais. A violencia contra a mulher nao eh parte integrante do caracter do "macho", mas resulta de normas de comportamento socialmente construidas.

Como refere N. Bikha (Noticias, 28/3/96), "A violencia no casal eh praticamente unidireccional, na direccao, eh claro, da mulher como vitima e tendo o homem como instrumento/sujeito activo principal".

No entanto, numa emissao do Magazine da Mulher na TVM (Fevereiro), foi proferida uma condenacao aberta da violencia domestica, ao mesmo tempo que se teceram consideracoes sobre as agressoes fisicas do marido para com a esposa, no sentido de educa-la e de leva-la a tomar o comportamento que se considera correcto.

Este exemplo eh dos mais reveladores quanto aa natureza da violencia como forma de dominacao. O "comportamento correcto" eh definido segundo os parametros da autoridade masculina que, ao ser desrespeitada, acarreta uma sancao "educativa".

Para alem das mudancas legais necessarias para desincentivar a violencia sistematica na esfera familiar (vide N. Bikha), devemos ter consciencia de que soh ao desafiar as relacoes de dominacao entre os sexos, esta questao serah resolvida.

Da forma como se desenvolveu o debate publico aa volta das declaracoes da presidente da AMMCJ, pode-se tambem tirar algumas conclusoes sobre a manipulacao da informacao nos orgaos de comunicacao social do Pais.

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4. O ABORTO E O DIREITO DE CONTROLAR O SEU PROPRIO CORPO (*)
por Ana Carla Granja
Medica (Ginecologia/Obstetricia)
Hospital Central do Maputo
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Em Mocambique, no ambito dos valores culturais tradicionais o estatuto da mulher depende do casamento e da sua capacidade de procriacao. Um grande valor eh atribuido a crianca, e a fertilidade eh ainda um requerimento necessario para a confirmacao da sua condicao de mulher e constitui motivo de orgulho para a familia do marido que pagou a compensacao matrimonial, o lobolo, pois deste modo a frequencia do grupo esta assegurada.

No entanto a expressao da capacidade reprodutiva da mulher ou seja a gravidez e o parto, assumida voluntariamente ou nao, podem constituir um perigoso desafio a sua propria sobrevivencia. De facto o risco de vida de uma mulher em Africa falecer por causas relacionadas com a gravidez e/ou parto eh frequentemente superior a 1 em 20, um risco centenas de vezes superior ao risco correspondente numa mulher dum pais desenvolvido. Estima-se em 500,000 o numero de mulheres que anualmente falecem de complicacoes da gravidez, aborto e parto, nos paises em desenvolvimento.

As principais causas desta tragedia sao a hemorragia obstetrica, a infeccao puerperal, as complicacaoes do aborto, as doencas hipertensivas da gravidez e outras doencas nomeadamente a malaria, anemia e outras, as quais a mulher eh mais susceptivel durante a gravidez. O aborto e suas complicacoes eh em muitos destes paises a segunda maior causa de morte (14 % de todas as mortes maternas), e calcula-se em 70,000 o numero anual de mortes, mas outras estatisticas apontam ateh 200,000 por ano para a dimensao do problema. Nao existe maneira de saber com exactidao qual das estimativas se aproxima da verdade porque o aborto induzido eh ilegal na maioria dos paises e, como resultado, as mortes por aborto nao sao denominadas como tal ou os falecimentos ocorrem fora das estruturas hospitalares, sendo frequentemente sub-notificadas.

Em Mocambique existem poucos dados publicados sobre a mortalidade materna, somente alguns dados hospitalares e outros colhidos por estimativas estatisticas. De acordo com os dados estatisticos, uma em cada 16 mulheres mocambicanas em idade reprodutiva morre por causas maternas. Dentre as causas mencionadas, o aborto eh visto como contribuindo com 9 % das causas de morte materna intra-hospitalar. Como ja referimos anteriormente, estes dados devem ser vistos como a ponta de um iceberg, pois muitas mulheres falecem fora do hospital, enquanto que para outras a morte decorre de complicacoes resultantes do aborto e nao sao registadas como tal devido ao estigma social, e aos aspectos legais prevalecentes actualmente no Pais.

Com efeito, as disposicoes legais sobre o aborto no nosso Pais, contidas no Codigo Penal em vigor que vem ainda do periodo colonial, referem explicitamente no artigo 358, "aquele que, de proposito, fizer abortar uma mulher pejada, empregando para este fim violencia ou bebidas, ou medicamentos, ou qualquer outro meio, se o crime for cometido sem o consentimento da mulher, sera condenado na pena de prisao maior de dois a oito anos." Paragrafo 2 - "Sera punida com a mesma pena a mulher que consentir e fizer uso dos meios subministrados, ou que voluntariamente procurar o aborto a si mesma, seguindo-se efectivamente o aborto".

As estrategias para combater as mortes por aborto, consistem basicamente em: prevenir a gravidez nao desejada, impedir o aborto em condicoes de perigo de saude para a mulher, promover a legalizacao do aborto e tratar as complicacoes.

* Prevenir a gravidez nao desejada - Os programas de planeamento familiar dispoem hoje em dia de uma variada gama de diferentes tipos de anticonceptivos eficazes que previnem a gravidez. Seria todavia um erro pensar que mesmo o melhor programa de planeamento familiar reduziria por completo a procura de aborto induzido. Ha varias razoes para isto; a primeira eh a de que qualquer metodo anticonceptivo tem uma taxa de falhas ainda que muito pequena para alguns, pelo que aplicado a um grande numero de utilizadoras o problema da gravidez nao desejada continuaria a existir.

Mesmo usando um metodo correctamente ao longo de varios anos, uma mulher pode experimentar pelo menos uma vez o facto de ter engravidado sem o desejar. Devido a falta de acesso a informacao e educacao, numerosas mulheres nao conhecem o planeamento familiar, ou conhecendo-o nao o usam. As razoes da falta de utilizacao de meios de planeamento familiar prendem-se com factores sociais, economicos,e culturais, interligados entre si numa complexa malha que na pratica torna a mulher vulneravel, no sentido em que nao pode ou nao dispoe de meios para controlar a sua capacidade reprodutiva. Assim, em varias fases da sua vida a mulher pode achar inconveniente o uso de anticonceptivos, dificeis de usar, de obter, ou muito caros.

A gravidez nao desejada pode tambem ocorrer quando o parceiro masculino eh hostil e recusa o planeamento familiar. Por vezes o pessoal das clinicas de planeamento familiar eh pouco colaborativo para com mulheres nao casadas, em particular com as adolescentes. Para alguns metodos como a laqueacao exige-se o consentimento por escrito do marido.

Em numerosas ocasioes as mulheres nao sao livres de decidir se querem ou nao ter relacoes sexuais. Eh exemplo disso a coercao sexual sob as forma mais subtis como a seducao no local de trabalho, escolas, e mesmo sob a forma de tradicoes culturalmente assumidas como validas tal como o caso do facto de a viuva na sociedade tradicional para continuar na familia do marido aceitar ter relacoes sexuais com um homem da familia. Sem falar no incesto ou na violacao, frequentemente nao denunciadas, pelo receio de represalias, ostracismo familiar ou social.

Um inquerito abrangendo 6115 mulheres em idade reprodutiva, na cidade capital de Maputo onde o numero de medicos e pessoal de saude por habitante eh a maior do Pais, revelou que embora 73% das mulheres tenham ouvido falar de planeamento familiar, 70% nao o utilizam. Por outro lado, entre a mulher que "quer os filhos que ja tem" (sic), apenas 36% usa o Planeamento familiar, embora 78% o conheca. As mulheres do Distrito Urbano no 1 com melhores condicoes de vida (Bairros Polana, Sommershild, Central Malhangalene e Alto-Mae) tem uma diferenca significativa na utilizacao de P.F. 39%, versus 26 %, em relacao as dos outros Distritos Urbanos da cidade.

As mulheres analfabetas utilizam menos o Planeamento Familiar (22%) que as escolarizadas (31%), o que realca bem de que maneira os factores socio-economicos influenciam a capacidade da mulher controlar o seu potencial reprodutivo. Entre outros factores que determinam a utilizacao da tecnologia de contracepcao disponivel no Sistema nacional de saude pelas utentes inclui-se a ocasional ruptura de stocks de determinado tipo de metodo, Centro de saude longe ou de dificil acesso, longo tempo de espera para as consultas e a qualidade de atendimento da parte do pessoal de saude.

* Impedir o aborto provocado em condicoes de perigo de saude para a mulher - esta "solucao" tem sido imposta por numerosas sociedades atraves de sancoes sociais, religiosas e legais de modo a impedir as mulheres de terem acesso ao aborto. Tais medidas, todavia, tem sido aparentemente ineficazes em impedir as mulheres de provocarem o aborto, ou mesmo deste ser fornecido por trabalhadores de saude ou "curiosas", por vias ilegais. Nos paises onde o aborto eh ilegal, a incidencia deste eh virtualmente impossivel de se determinar. Todavia ele constitui um grande problema de saude, mesmo em sociedades africanas onde "vulgarmente" se diz que as mulheres querem tantos filhos quantos Deus enviar.

No Hospital Central de Maputo, 14 163 mulheres foram atendidas na urgencia de Ginecologia durante o ano de 1994. Uma elevada percentagem destas urgencias sao tratamento de ameaca de aborto ou de aborto incompleto e suas complicacoes, nao sendo raro o aparecimento de casos de aborto provocado com permanganato de potassio, manipulacao do colo do utero em condicoes nao higienicas com paus e outros objectos perfurantes, que provocam hemorragia e infeccoes graves resultantes do trauma, com graves consequencias imediatas para a saude da mulher e afectando o seu futuro potencial reprodutivo.

Cerca de dois tercos dos casos de infertilidade em Africa sao devidos a infeccoes pelvicas com oclusao das trompas. Mesmo nas melhores condicoes de "aborto legal" a doenca inflamatoria pelvica ocorre em cerca de 0 a 13 % dos casos.

* Legalizar o aborto A legalizacao do aborto eh vista internacionalmente como uma das razoes para a diminuicao drastica da mortalidade materna por complicacoes do aborto. Todavia, embora a legalizacao ajude a diminuir as mortes devido ao aborto ela nao e necessaria nem suficiente para melhorar o acesso a servicos de aborto em condicoes de seguranca para a saude da mulher.

No nosso Pais desde ha varios anos que varios Hospitais liberalizaram o acesso a interrupcao voluntaria da gravidez (I.V.G.) dentro das estrutras de Saude, muito embora a legislacao sobre o assunto se mantenha a mesma. Para ter acesso a uma I.V.G. eh necesario no entanto uma serie de condicionalismos de caracter economico e social, bem como requesitos clinicos. A candidata devera fazer uma ecografia para datacao da idade gestacional, uma analise ao sangue para determinacao da hemoglobina, um pedido em papel enderecado ao Director do Hospital ou Departamento de Ginecologia e Obstetricia e finalmente, caso seja aceite, devera pagar o acto medico. O total das despesas varia entre 150 a 200 mil meticais, como minimo. [O equivalente ao salario minimo nacional, ou USD 15-20].

Certas mulheres consideram embaracoso ter de fazer um pedido por escrito para realizar um acto medico desta natureza, pois algumas podem ter restricoes de caracter social, serem solteiras, adolescentes, viuvas ou por outros motivos considerarem que a confidencialidade do seu problema sera posta em causa.

Outras carecem de informacao e educacao necessarias para utilizarem estes servicos ou eles estao longe do seu alcance pois sao prestados normalmente dentro de Hospitais Centrais e Gerais. Outras ainda nao possuem o dinheiro suficiente para pagarem todas as despesas decorrentes do acto em si, mais os medicamentos que forem necessarios e eventuais consultas que necessitem para controle ou tratamento de complicacoes.

Por todas estas razoes o acesso a uma I.V.G. "legal" esta ainda restrito a determinadas camadas de populacao feminina urbana com facilidades socio-economicas, e mesmo esta camada beneficiada nao possui o controle do acto em si, pois em alguns Hospitais a mulher deve submeter-se aos metodos utilizados e ao pessoal destacado para executar o acto medico, sem possibilidade de atendimento personalizado.

* Tratamento das complicacoes do aborto Devido as sancoes morais, culturais, religiosas e legais que rodeiam a problematica do aborto, a maioria das muheres que recorrem ao mesmo, chegam aos cuidados de saude tarde com complicacoes como hemorragia e anemia, infeccao que pode chegar rapidamente ao estadio de peritonite e septicemia. A consequencia eh uma elevada morbilidade por aborto (necessidade de intervencao cirurgica com ou sem remocao do utero por presenca de infeccoes pelvicas que mesmo tratadas levam frequentemente a esterilidade).

Estas complicacoes exigem cuidados intensivos para reposicao de plasma e sangue e administracao de antibioticos e soro, bem como facilidades cirurgicas e de pessoal devidamente especializado, os quais sao inexistentes ou de insuficiente qualidade em muitas Unidades Sanitarias perifericas e mesmo em alguns Hospitais gerais e Centrais. Por outro lado existe uma demora na prestacao de cuidados adequados a este tipo de pacientes devido a sobrecarga de trabalho nos servicos de urgencia dos Hospitais do estado, falta de recursos humanos, falta de medicamentos, necesssidade de pagamento dos cuidados de saude em alguns hospitais privados ou estatais com cuidados privados em simultaneo.

Tudo isto leva a que a mulher apenas recorra aos cuidados de saude quando verifica que existem complicacoes e mesmo o facto de ela recorrer aos mesmos nao significa que os seus problemas sejam imediatamente resolvidos. Em alguns casos o medo de sancoes familiares ou ostracismo social eh tal, que a mulher com uma gravidez nao desejada recorre ao suicidio como acto de desespero nos casos em que o acessso ao aborto eh restrito ou inexistente.

Com efeito, embora a reproducao humana diga respeito a dois, a factura das suas consequencias e quase sempre comportada unicamente pela mulher. De acordo com a dupla moralidade existente na nossa sociedade, as mulheres ficam sos com a responsabilidade de assumir ou nao a gravidez, e com as consequencias fisicas e psiquicas que advem da sua respectiva decisao, quer seja a de a continuar ou de a interromper em condicoes perigosas para a sua saude.

E por isso que a lideranca da luta por assumir a problematica do aborto como algo a ser discutido amplamente e a ser colocado sob o ponto de vista legal, dentro do contexto dos direitos reprodutivos da mulher cabe ao sexo feminino, atraves do fazer ouvir a sua voz nas organizacoes governamentais e nao-governamentais, associacoes e redes de comunicacao no contexto de uma luta global.

Cento e trinta paises da Comunidade Internacional, atraves da sua Convencao no ambito dos direitos humanos, reconheceu a mulher "o direito de decidir livre e responsavelmente sobre o numero de filhos e o seu espacamento, e o direito a informacao, educacao e aos meios que as capacite de exercer esses direitos". Mas para alem das boas intencoes politicas, cabe a nos mulheres de todo o Mundo e Mocambicanas em particular de fazer valer estes direitos na pratica do nosso dia a dia.

Viva o Dia da Mulher Mocambicana.

(*) Nota: Este artigo vinha acompanhado duma rica bibliografia que cortamos por razoes de espaco. Quem quiser copia do artigo original completo pode contactar wenke@adam.uem.mz.

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5. GENERO E RIQUEZA NO MOCAMBIQUE RURAL
por Wenke Adam
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Muitas das praticas da sociedade rural mocambicana foram sistematicamente condenadas no discurso politico do pos- independencia e muitas vezes menosprezadas no ambito da investigacao academica. O lobolo e a poligamia foram dois alvos especialmente atacados durante muitos anos como manifestacoes retrogradas ou obscurantistas que atentavam contra a emancipacao da mulher, sem se atender aas razoes profundas do papel que jogam na logica socio-economica dos camponeses.

Dois estudos recentes ilustram a complexidade do fenomeno: Os resultados do Inquerito Agricola realizado em 30 distritos pelo Ministerio da Agricultura em 1993/94, foram comparados com os da Missao de Inquerito Agricola dos anos sessenta, para determinar a evolucao do tamanho das machambas em relacao ao numero do agregado familiar e o grau de mecanizacao. (Analise preliminar dos dados do Inquerito Agricola 93/94, realizada por Chris Hill da Direccao de Economia do Ministerio de Agricultura e Pescas, 1995). Chegou-se aa conclusao que o tipo de exploracao agricola mais rentavel em termos de producao/inputs continua a ser aquela onde trabalha um homem e varias mulheres adultas, usando instrumentos manuais e empregando mao-de-obra ocasional. Isto indicaria que a mulher camponesa de facto pode ter vantagens em participar num casamento poligamo.

No Estudo Participativo sobre a Pobreza em Mocambique, realizado recentemente nas 10 provincias do pais pelo Centro de Estudos da Populacao, UEM, dirigido por Yussuf Adam, os dados recolhidos mostram que:

1. O numero de mulheres com quem um homem esta casado definem o seu estatuto como rico ou pobre. Uma casa onde existem um homem e seis mulheres mas nenhuma delas eh sua esposa, eh uma casa pobre. [Inversamente, considera-se rica uma mulher casada com homem rico].

2. Um homem ou uma mulher soh, por viuvez, divorcio ou por nao se terem casado, sao considerados pobres. O conceito de pobreza nao e unicamente aplicado a um individuo mas sim a uma familia. Uma pessoa soh eh sempre pobre, mesmo que tenha outros indicadores de riqueza material (meios de producao, animais, terra, dinheiro, tractor, carro). Se nao e casado nao e rico. Um individuo cuja linhagem foi toda morta numa guerra e considerado pobre.

3. Homens e mulheres teem um conceito de pobreza/riqueza diferente: os homens consideram como indices o numero de mulheres, a forca fisica, os meios de producao, o tipo de bens, a quantidade de dinheiro. As mulheres tendem a avaliar a pobreza/riqueza considerando os bens, o dinheiro e o numero de empregados.

4. As prioridades de desenvolvimento vistas pelos homens ou pelas mulheres sao diferentes variando tambem de distrito para distrito e de aldeia para aldeia. As mulheres tendem a valorizar a seguranca alimentar, a roupa e a saude. Os homens os meios de producao, o comercio e o transporte. [fim da citacao]

Se consideramos que o lobolo eh o acto simbolico que formaliza o casamento, e que atraves desse casamento quer a mulher quer o homem tem accesso e garantia de uma extensa rede de seguranca social, nao eh de extranhar que essa pratica seja defendida com forca pelas mulheres camponesas apesar de constituir, tambem, um sistema opressivo em muitos sentidos.

Temos que reconhecer que ainda nao surgiu uma alternativa viavel ao lobolo: na chamada sociedade moderna -quando funciona- a seguranca social eh fornecida por uma rede de instituicoes estatais e privadas de accesso universal: a caixa de previdencia, o subsidio de desemprego, o seguro de vida, a creche, o lar de anciaos... Os subsidios de Maastricht compensam os camponeses europeus contra os efeitos das cheias, das secas e do sacrificio das vacas loucas. Mas ai de quem nesses paises nao possui um numero de registo pessoal e os impostos em dia! Ai de quem nao cumpra rigorosamente os rituais exigidos no preenchimento dos impressos!

No Mocambique rural, a rede das familias interligadas pelo casamento cumpre, bem ou mal, todas essas funcoes sociais basicas. O sistema irah mudar na medida em que mudem as condicoes de vida e se abram novas perspectivas consideradas mais desejaveis. Ou como disse a Miss Mocambique: "o que contribuiu para mudar... foi o proprio ritmo da vida em si".

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* Noticias de Mocambique no WWW. NotMoc jah pode ser consultado em diversas paginas do Web. Em Mocambique existe um acesso com o endereco http://www.uem.mz.

Outro endereco que merece destaque eh a "home page" de Nuno Teixeira, em Portugal: http://www.telepac.pt/tvn. Nuno tambem criou um "local de conversa" sobre assuntos ligados a Mocambique: http://www.telepac.pt/tvn/dirhtm/wwwboard/wwwboard.html A primeira pagina do WWW que tinha NotMoc continua a existir: http://leo.lnec.pt/~lms/NotMoc.

E ainda hah outras, algumas das quais conhecemos apenas porque as encontramos por acaso. Se voce conhece outras, informe-nos. Um exemplo: http://www.geocities.com/TheTropics/1545/notmoc.htm. Assim como o NotMoc eh feito inteiramente por voluntarios, a trans- formacao do jornal em paginas do WWW, em hypertext e muitas vezes com todos os acentos e c-cedilhas que o e-mail nao permite, tambem eh o trabalho de voluntarios dedicados. O nosso agradecimento.

* Quem soh tenha acesso a e-mail, que eh o caso dos utilizadores em Mocambique e na maior parte dos paises africanos, pode obter paginas do WWW atraves de "webmailers" como agora@www.undp.org, w3mail@gmd.de, agora@dna.affrc.go.jp, e muitos outros.

* Todos os NotMocs, a partir do numero 0, podem ser obtidos por FTP no endereco: oceano.uem.mz. Login: anonymous, Password: o seu endereco de e-mail, cd pub/notmoc, get ls ou get ls -al. Para quem tenha apenas e-mail, existem os "FTP-mailers", como por exemplo: ftpmail@decwrl.dec.com, ftpmail@ftp.uni-stuttgart.de, ftpmail@ @ftp.sun.ac.za, e muitos outros.

* NotMoc continua na BBS TROPICAL (Mocambique): tel. (1) 425745 e na BBS ALPHA (Africa do Sul): tel: (+27-11) 435-0099, 435-1446, 435-1454, 435-1456, 435-3922 e 435-1431.

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Fontes: Noticias, MediaFAX, Domingo, Savana, Demos
TVM, RM, AIM, LUSA, SAPA, fontes proprias
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Este numero de NotMoc - Noticias de Mocambique foi feito por:
Wenke Adam - redaccao final
com a colaboracao de:
Maria Jose Ribeiro Arthur, Paula Meneses e Ana Carla Granja

Pedidos de assinatura: wenke@adam.uem.mz
Qualquer correspondencia sobre o conteudo deste jornal
deve ser dirigida aos autores ou ao endereco wenke@adam.uem.mz
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Message-Id: <199604090800.EAA19582@orion.sas.upenn.edu> From: Wenke Adam <wenke@adam.uem.mz> Date: Tue, 9 Apr 1996 05:34:06 Subject: NotMoc 76

Editor: Ali B. Ali-Dinar

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